
a besta, as luas
Residência de criação no Campus Jardim das Pedras, Feital, 2019.
Através de gestos e sons, proponho enunciar, uma representação possível da geografia política de um corpo não submisso.
Num momento onde tantos corpos e tantas vozes dificilmente podem existir, é urgente reivindicar um lugar de resistência, transformando possíveis fragilidades em flechas e potências. O corpo como arma política, o último reduto de qualquer experiência, um grito. De afirmação de uma individualidade, em reconciliação com a sua identidade e sexualidade: do sexo à cabeça, da cabeça ao cosmos, do cosmos ao chão. Uma possível reza em linha recta para nos mantermos de pé.
Criação Elizabete Francisca Interpretação Elizabete Francisca (ou Vânia Doutel Vaz) Concepção sonora e operação ao vivo Kino Sousa Figurino Carlota Lagido Produção Elizabete Francisca e O Rumo do Fumo Agradecimentos Associação Luzlinar/ Projecto Pontes, A Casa do Burrikórnio, Damas Bar, Carlos Manuel Oliveira e em especial a Julia Salem
Duração aprox. 30 min

[texto escrito durante o processo de criação, a 25 de Setembro de 2019, que situa alguns dos “porquês” desta dança.]
Iniciei este trabalho num momento bastante conturbado, uma tal crise planetária, que engloba uma crise ecológica e das energias, uma crise generalizada das democracias e uma crise económica mundial em ascensão. Contudo, e parafraseando os Comité Invisível, todas as épocas são orgulhosas, cada uma se vê como única, e isso aguça o prazer de viver uma época sem igual. O tempo de vida de cada um de nós, pelo menos na forma que a conhecemos, parece-me demasiado curto para se poder entender no seu absoluto esta humanidade e o seu percurso: os suas falhas, as suas vitórias, os seus hábitos de operação, as suas terapias de choque, os seus ciclos ou o chamado eterno retorno.
Assistimos a uma ascensão generalizada de movimentos de extrema direita, e com eles a justificação e a validação de posições e manifestações cada vez mais acentuadas de fascismo, machismo, xenofobia, homofobia, transfobia. Muitos - ias e - ismos: infelizmente sabemos que a lista é bem longa para palavras tão assustadoramente mortais. E sabemos que muitas destas catástrofes não nos afectam. Não há nem pode haver uma real afectação, simplesmente porque os aparelhos com que mediamos o mundo são ecrãs. Somos os existencialistas superequipados com o seu smartphone, essa sofisticada aparelhagem da ausência. Ou não seriam essas mesmas janelas virtuais aquilo que paradoxalmente nos dá a sensação de controle e poder – porque estamos informadas – mas que, e ao mesmo tempo, nos distancia de tudo. Tamanha acumulação de natureza tão distintas, que gera uma não assimilação, uma não digestão.
E eu, estou aqui. Mais que incluída, nesse regime de afectações:
Estávamos no último período de eleições presidenciais no Brasil. Jair M. Bolsonaro, figura realmente execrável subia ao poder, e com ele proclamava-se e proclamar-se-á uma guerra à diferença, à multiplicidade, à livre expressão e à justiça, contribuindo para a continuidade de desastres humanos e ambientais. Certamente, foi pela minha vivência naquele país, por essa familiaridade com os lugares e com as pessoas só possível através da experiência directa, que este acontecimento se me tornou íntimo. Político e íntimo, com ou sem ecrãs. Vi e ouvi muitos amigos, mas também muitos estranhos a terem de fugir. Fugir para outros lugares, para outros países. Fugir daquelas ruas, que quase mais nada podem oferecer, a não ser violência. “Sair para a rua, todos os dias, a qualquer hora, é como ir para um campo de batalha, é saber que podes não voltar mais” – diziam-me. Ora por defenderem uma democracia, ora por serem mulheres ora por pertencerem à comunidade LGBT, estavam condenados. O seu corpo e a sua voz estavam condenados. Aqueles corpos e aquelas vozes deixaram de poder existir. E nestes desastres, surgem movimentos de resistência, que reivindicam o seu lugar de fala, e que utilizam e transformam fragilidades em força e potência. Artistas como Elza Soares, Karol Konka, Flora de Matos, Johnny Hooker, Os Não Recomendados, Luedji Luna, Liniker e Linn da Quebrada, iniciam através da música e da performatividade um movimento incendiário de revolta e afirmação usando o seu corpo como território. Corpo como uma verdadeira arma política, ou não seria afinal, o corpo o último reduto de qualquer experiência. E se é nele que se pode rever verdadeiramente as consequências de um sistema, é através dele que se pode reverter processos e por isso realidades. Uma transição exterior (entendo aqui, aquilo que nos rodeia), só é possível com e a par duma transição interior. Esse desmantelamento, esse colocar em questão contínuo, das nossas ideologias, ideias e certezas.
Imbuída destas forças, forças porque sensíveis, e da evidência que regimes de afectação criam necessidade e por isso verdade, a urgência em me posicionar enquanto artista, mas também como mulher jovem bisexual que sofre violência é uma evidência.
As desigualdades, o fosso criado entre as pessoas é um grande problema.
A desigualdade de género é um grande problema.
O sistema patriarcal é um grande problema.
E neste domínio, o maior será talvez, a impossibilidade de cada um estar plenamente em reconciliação profunda com a sua identidade e sexualidade. Essa intimidade que nos permite aproximar do mundo e por isso fazer mundo.
O meu corpo é o meu território.
Do sexo à cabeça, da cabeça ao sexo, e da cabeça ao chão.
Uma possível reza em linha recta para nos mantermos de pé.
